Infantolatria: as consequências de deixar a criança ser o centro da família
Além das complicações na vida dos filhos, como dificuldade de socialização e insegurança, deixar a criança comandar a dinâmica familiar pode prejudicar – e muito – o casal
As atividades da família são definidas em função dos filhos, assim como o
cardápio de qualquer refeição. As músicas ouvidas no carro e os
programas assistidos na televisão precisam acompanhar o gosto dos
pequenos, nunca dos adultos. Em resumo, são as crianças que comandam o
que acontece e o que deixa de acontecer em casa. Quando isso acontece e
elas já têm mais de dois anos de idade, é hora de acender uma luz de
alerta. Eis aí um caso de infantolatria.
“O
processo de mudança nos conceitos de família iniciado no século 18 por
Jean-Jacques Rousseau [filósofo suíço, um dos principais nomes do
Iluminismo] chegou ao século 20 com a ‘religião da maternidade’, em que o
bebê é um deus e a mãe, uma santa. Instituiu-se o que é uma boa mãe sob
a crença de que ela é responsável e culpada por tudo que acontece na
vida do filho, tudo que ele faz e fará. Muitos afirmam que a mulher
venceu, pois emancipou-se e foi para o mercado de trabalho, mas não: é a
criança que entra no século 21 como a vitoriosa. Esta é a semente da
infantolatria”, explica a psicanalista Marcia Neder, pesquisadora do
Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da Universidade de São
Paulo (Nuppe-USP) e autora do livro “Déspotas Mirins – O Poder nas Novas
Famílias”, da editora Zagodoni.
Em poucas palavras, Marcia define infantolatria como “a instituição da
mãe como súdita do filho e o adulto se colocando absolutamente
disponível para a criança”. E exime os pequenos de qualquer
responsabilidade sobre o quadro: “Um bebê não tem poder para determinar
como será a dinâmica familiar. Se isso acontece, é porque os
pais promovem".
Reinado curto
A
verdade é que existe um período em que os filhos podem reinar na
família, mas ele é curto. “Quando o bebê nasce e chega em casa, precisa
ser colocado no centro das ações, pois precisa ser decifrado, entendido.
Ele deve perder o trono no final do primeiro, no máximo ao longo do
segundo ano de vida, para entender que existe o outro, com necessidades
e vontades diferentes das dele”, esclarece Vera Blondina Zimmermann,
psicóloga do Centro de Referência da Infância e Adolescência da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A infantolatria ganha espaço quando os pais não sabem ou não conseguem
fazer essa adequação da criança à realidade que a cerca e a mantêm no
centro das atenções por tempo indefinido. “Em uma família com
relacionamento saudável, o filho entra e tem que ser adaptado à dinâmica
da casa, à rotina dos adultos”, afirma a psicóloga.
Segurança ou insegurança?
Na casa da analista contábil Paula Torres, é ao redor de Luigi, de cinco
anos, que tudo acontece. Entre os privilégios do garoto estão definir o
canal em que a TV fica ligada e o dia do fim de semana em que será
servida pizza no jantar. “Acho importante a criança se sentir amada e
saber que suas vontades são relevantes para a família”, opina.
Ela conta que seu marido, o também analista contábil Luiz André Torres,
não gosta muito disso e constantemente reclama que o filho é mimado
demais. “Mas bato o pé e defendo essa proteção. Quando o Luigi crescer,
será mais seguro para lidar com os adultos, já que suas opiniões são
levadas em consideração pelos adultos com quem ele convive desde já”,
acredita.
Não é o que as especialistas dizem. “Se o filho fica no nível dos pais,
acaba criando para si uma falsa sensação de poder e autonomia que, em um
momento mais adiante, se traduzirá em uma profunda insegurança. Ele
sentirá a falta de uma referência forte de segurança de um adulto em sua
formação”, explica Vera.
Marcia diz ainda que, ao chegar à idade adulta, esse filho cobrará os
pais. “Ele olhará ao redor e verá outras pessoas se realizando
independentemente dele. A criança que acha que o mundo tem que parar
para ela passar não consegue imaginar isso acontecendo e não está
preparada para lidar com a mínima das frustrações. Em algum ponto,
acusará os pais de terem sido omissos”.
Para Vera, supervalorizar os pequenos e nivelá-los aos adultos “é o
resultado de uma projeção narcísica dos pais nos filhos, que se veem nas
qualidades que enxergam em suas crianças”. Marcia concorda: “Isso tudo
tem a ver com a vaidade da mãe, que considera aquele filho uma parte
melhorada dela própria e, por isso, a criatura mais importante do
mundo”.
Os alertas do dia a dia
Muitas vezes, os pais não se dão conta de que estão tratando os filhos
como reis ou rainhas, então precisam levar uns chacoalhões da realidade
fora de suas casas. “Eles geralmente caem em si quando começa a
sociabilização. A escola reclama porque o aluno não respeita as regras, a
criança tem dificuldade para fazer amiguinhos porque as outras, com
autoestima positiva, não querem ficar perto de alguém que ache que manda
em todos”, aponta Vera.
“Em uma família com relacionamento saudável, o filho entra e tem que ser adaptado à dinâmica da casa, à rotina dos adultos”
“Em um futuro bem imediato, as reações dos colegas podem fazer a criança
perceber que precisa mudar. Ela se comportará com eles como faz com a
família e receberá a não-aceitação como resposta. Terá de lidar com isso
para ter amigos”, afirma Marcia.
Mesmo assim, ela ainda correrá o risco de não conseguir rever seus
comportamentos devido a uma superproteção parental, adverte Vera: “Em
alguns casos dá para ela se salvar, mas muitos pais preferem culpar o
‘mundo injusto com seu filho perfeito’, o que impede que ela entenda as
necessidades dos outros e reforça seus problemas de inadequação para a
adaptação social”.
E como fica o casal?
Além de todas as complicações causadas pela infantolatria na vida dos
filhos, ela prejudica – e muito – o casal que a promove. “Na relação
saudável, o casal continua sendo o mais importante na família mesmo com a
chegada da criança. Se os pais mantêm o filho no centro por mais tempo
do que o necessário, acabarão se afastando”, alerta Vera.
“Some o casal. O ‘marido’ e a ‘mulher’ passam a ser o ‘pai’ e a ‘mãe’. E
se em uma casa a mãe é a santa e o filho é o deus, onde fica o espaço
do pai?”, questiona Marcia. “Muitos tentam entrar, reconquistar seu
espaço, mas outros simplesmente caem fora”, constata.
O futuro da infantolatria
Sabendo disso tudo, os pais têm condições de se preparar para evitar os
estragos na criação dos filhos. Marcia conta que percebe que as pessoas
têm encontrado em sua análise uma saída para a tirania infantil.
“Não sou adivinha, mas creio que o novo arranjo familiar, em que os pais
também assumem funções na criação dos filhos e as mães seguem carreiras
por prazer, vá ajudar a mudar o panorama, assim como os arranjos
homoparentais que começam a ser mais comuns”, diz, para complementar:
“Creio que todos os comportamentos continuarão existindo, mas temos a
obrigação de trabalhar para reverter esse quadro. O filho não é o centro
porque quer, mas porque o adulto permite”.
Vera enxerga o futuro da situação de forma um pouco diferente. “Nossa
sociedade é muito apressada e, no geral, não dá espaço para a
preocupação com o outro. Isso tende a potencializar esse tipo de
problema, a naturalizar para a criança o fato de que ela é o que mais
importa, como aprendeu em casa com o comportamento dos pais em relação a
ela”, finaliza.
Fonte:http://delas.ig.com.br/filhos/2014-03-22/infantolatria-as-consequencias-de-deixar-a-crianca-ser-o-centro-da-familia.html
Infantolatria: as consequências de deixar a criança ser o centro da família
Além das complicações na vida dos filhos, como dificuldade de socialização e insegurança, deixar a criança comandar a dinâmica familiar pode prejudicar – e muito – o casal
As atividades da família são definidas em função dos filhos, assim como o
cardápio de qualquer refeição. As músicas ouvidas no carro e os
programas assistidos na televisão precisam acompanhar o gosto dos
pequenos, nunca dos adultos. Em resumo, são as crianças que comandam o
que acontece e o que deixa de acontecer em casa. Quando isso acontece e
elas já têm mais de dois anos de idade, é hora de acender uma luz de
alerta. Eis aí um caso de infantolatria.
“O
processo de mudança nos conceitos de família iniciado no século 18 por
Jean-Jacques Rousseau [filósofo suíço, um dos principais nomes do
Iluminismo] chegou ao século 20 com a ‘religião da maternidade’, em que o
bebê é um deus e a mãe, uma santa. Instituiu-se o que é uma boa mãe sob
a crença de que ela é responsável e culpada por tudo que acontece na
vida do filho, tudo que ele faz e fará. Muitos afirmam que a mulher
venceu, pois emancipou-se e foi para o mercado de trabalho, mas não: é a
criança que entra no século 21 como a vitoriosa. Esta é a semente da
infantolatria”, explica a psicanalista Marcia Neder, pesquisadora do
Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da Universidade de São
Paulo (Nuppe-USP) e autora do livro “Déspotas Mirins – O Poder nas Novas
Famílias”, da editora Zagodoni.
Em poucas palavras, Marcia define infantolatria como “a instituição da
mãe como súdita do filho e o adulto se colocando absolutamente
disponível para a criança”. E exime os pequenos de qualquer
responsabilidade sobre o quadro: “Um bebê não tem poder para determinar
como será a dinâmica familiar. Se isso acontece, é porque os
pais promovem".
Reinado curto
A
verdade é que existe um período em que os filhos podem reinar na
família, mas ele é curto. “Quando o bebê nasce e chega em casa, precisa
ser colocado no centro das ações, pois precisa ser decifrado, entendido.
Ele deve perder o trono no final do primeiro, no máximo ao longo do
segundo ano de vida, para entender que existe o outro, com necessidades
e vontades diferentes das dele”, esclarece Vera Blondina Zimmermann,
psicóloga do Centro de Referência da Infância e Adolescência da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A infantolatria ganha espaço quando os pais não sabem ou não conseguem
fazer essa adequação da criança à realidade que a cerca e a mantêm no
centro das atenções por tempo indefinido. “Em uma família com
relacionamento saudável, o filho entra e tem que ser adaptado à dinâmica
da casa, à rotina dos adultos”, afirma a psicóloga.
Segurança ou insegurança?
Na casa da analista contábil Paula Torres, é ao redor de Luigi, de cinco
anos, que tudo acontece. Entre os privilégios do garoto estão definir o
canal em que a TV fica ligada e o dia do fim de semana em que será
servida pizza no jantar. “Acho importante a criança se sentir amada e
saber que suas vontades são relevantes para a família”, opina.
Ela conta que seu marido, o também analista contábil Luiz André Torres,
não gosta muito disso e constantemente reclama que o filho é mimado
demais. “Mas bato o pé e defendo essa proteção. Quando o Luigi crescer,
será mais seguro para lidar com os adultos, já que suas opiniões são
levadas em consideração pelos adultos com quem ele convive desde já”,
acredita.
Não é o que as especialistas dizem. “Se o filho fica no nível dos pais,
acaba criando para si uma falsa sensação de poder e autonomia que, em um
momento mais adiante, se traduzirá em uma profunda insegurança. Ele
sentirá a falta de uma referência forte de segurança de um adulto em sua
formação”, explica Vera.
Marcia diz ainda que, ao chegar à idade adulta, esse filho cobrará os
pais. “Ele olhará ao redor e verá outras pessoas se realizando
independentemente dele. A criança que acha que o mundo tem que parar
para ela passar não consegue imaginar isso acontecendo e não está
preparada para lidar com a mínima das frustrações. Em algum ponto,
acusará os pais de terem sido omissos”.
Para Vera, supervalorizar os pequenos e nivelá-los aos adultos “é o
resultado de uma projeção narcísica dos pais nos filhos, que se veem nas
qualidades que enxergam em suas crianças”. Marcia concorda: “Isso tudo
tem a ver com a vaidade da mãe, que considera aquele filho uma parte
melhorada dela própria e, por isso, a criatura mais importante do
mundo”.
Os alertas do dia a dia
Muitas vezes, os pais não se dão conta de que estão tratando os filhos
como reis ou rainhas, então precisam levar uns chacoalhões da realidade
fora de suas casas. “Eles geralmente caem em si quando começa a
sociabilização. A escola reclama porque o aluno não respeita as regras, a
criança tem dificuldade para fazer amiguinhos porque as outras, com
autoestima positiva, não querem ficar perto de alguém que ache que manda
em todos”, aponta Vera.
“Em uma família com relacionamento saudável, o filho entra e tem que ser adaptado à dinâmica da casa, à rotina dos adultos”
“Em um futuro bem imediato, as reações dos colegas podem fazer a criança
perceber que precisa mudar. Ela se comportará com eles como faz com a
família e receberá a não-aceitação como resposta. Terá de lidar com isso
para ter amigos”, afirma Marcia.
Mesmo assim, ela ainda correrá o risco de não conseguir rever seus
comportamentos devido a uma superproteção parental, adverte Vera: “Em
alguns casos dá para ela se salvar, mas muitos pais preferem culpar o
‘mundo injusto com seu filho perfeito’, o que impede que ela entenda as
necessidades dos outros e reforça seus problemas de inadequação para a
adaptação social”.
E como fica o casal?
Além de todas as complicações causadas pela infantolatria na vida dos
filhos, ela prejudica – e muito – o casal que a promove. “Na relação
saudável, o casal continua sendo o mais importante na família mesmo com a
chegada da criança. Se os pais mantêm o filho no centro por mais tempo
do que o necessário, acabarão se afastando”, alerta Vera.
“Some o casal. O ‘marido’ e a ‘mulher’ passam a ser o ‘pai’ e a ‘mãe’. E
se em uma casa a mãe é a santa e o filho é o deus, onde fica o espaço
do pai?”, questiona Marcia. “Muitos tentam entrar, reconquistar seu
espaço, mas outros simplesmente caem fora”, constata.
O futuro da infantolatria
Sabendo disso tudo, os pais têm condições de se preparar para evitar os
estragos na criação dos filhos. Marcia conta que percebe que as pessoas
têm encontrado em sua análise uma saída para a tirania infantil.
“Não sou adivinha, mas creio que o novo arranjo familiar, em que os pais
também assumem funções na criação dos filhos e as mães seguem carreiras
por prazer, vá ajudar a mudar o panorama, assim como os arranjos
homoparentais que começam a ser mais comuns”, diz, para complementar:
“Creio que todos os comportamentos continuarão existindo, mas temos a
obrigação de trabalhar para reverter esse quadro. O filho não é o centro
porque quer, mas porque o adulto permite”.
Vera enxerga o futuro da situação de forma um pouco diferente. “Nossa
sociedade é muito apressada e, no geral, não dá espaço para a
preocupação com o outro. Isso tende a potencializar esse tipo de
problema, a naturalizar para a criança o fato de que ela é o que mais
importa, como aprendeu em casa com o comportamento dos pais em relação a
ela”, finaliza.
Fonte:http://delas.ig.com.br/filhos/2014-03-22/infantolatria-as-consequencias-de-deixar-a-crianca-ser-o-centro-da-familia.html
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