A DOIDA - Carlos Drummond de Andrade
A doida
Carlos Drummond de Andrade
A doida habitava um chalé no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o córrego, onde os meninos costumavam banhar-se. Era só aquele chalezinho, à esquerda, entre o barranco e um chão abandonado; à direita, o muro de um grande quintal. E na rua, tornada maior pelo silêncio, o burro pastava. Rua cheia de capim, pedras soltas, num declive áspero. Onde estava o fiscal, que não mandava capiná-la?
Os
três garotos desceram manhã cedo, para o banho e a pega de passarinho.
Só com essa intenção. Mas era bom passar pela casa da doida e provocá-la.
As mães diziam o contrário: que era horroroso, poucos pecados seriam
maiores. Dos doidos devemos ter piedade, porque eles não gozam dos
benefícios com que nós, os sãos, fomos aquinhoados. Não explicavam bem
quais fossem esses benefícios, ou explicavam demais, e restava a
impressão de que eram todos privilégios de gente adulta, como fazer
visitas, receber cartas, entrar para irmandade. E isso não comovia
ninguém. A loucura parecia antes erro do que miséria. E os três sentiam-se inclinados a lapidar a doida, isolada e agreste no seu jardim.
Como era mesmo a cara da doida, poucos poderiam dizê-lo. Não aparecia de frente e de corpo inteiro, como as outras pessoas, conversando na calma. Só o busto, recortado, numa
das janelas da frente, as mãos magras, ameaçando. Os cabelos, brancos e
desgrenhados. E a boca inflamada, soltando xingamentos, pragas, numa voz rouca. Eram palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera.
Sabia-se confusamente que a doida tinha sido moça igual às outras no seu tempo remoto (contava mais de 60 anos, e loucura e idade, juntas, lhe lavravam o corpo). Corria, com variantes, a história de que fora noiva de um fazendeiro, e o casamento, uma festa estrondosa; mas na própria noite de núpcias o homem a repudiara, Deus sabe por que razão. O marido ergueu-se terrível e empurrou-a, no calor do bate-boca; ela rolou escada abaixo, foi quebrando ossos, arrebentando-se. Os dois nunca mais se viram. Já outros contavam que o pai, não o marido, a expulsara, e esclareciam que certa manhã o velho sentira um amargo diferente no café, ele que tinha dinheiro grosso e estava custando a morrer – mas nos racontos antigos abusava-se de veneno. De qualquer modo, as pessoas grandes não contavam a história direito, e os meninos deformavam o conto. Repudiada por todos, ela se fechou naquele chalé do caminho do córrego, e acabou perdendo o juízo. Perdera antes todas as relações. Ninguém tinha ânimo de visitá-la. O padeiro mal jogava o pão na caixa de madeira, à entrada, e eclipsava-se. Diziam que nessa caixa uns primos generosos mandavam pôr, à noite, provisões e roupas, embora oficialmente a ruptura com a família se mantivesse inalterável. Às vezes uma preta velha arriscava-se a entrar, com seu cachimbo e sua paciência educada no cativeiro, e lá ficava dois ou três meses, cozinhando. Por fim a doida enxotava-a. E, afinal, empregada nenhuma queria servi-la. Ir viver com a doida, pedir a bênção à doida, jantar em casa da doida, passou a ser, na cidade, expressões de castigo e símbolos de irrisão.
Vinte anos de tal existência, e a legenda está feita. Quarenta, e não há mudá-la. O sentimento de que a doida carregava uma culpa, que sua própria doidice era
uma falta grave, uma coisa aberrante, instalou-se no espírito das
crianças. E assim, gerações sucessivas de moleques passavam pela porta,
fixavam cuidadosamente a vidraça e lascavam uma pedra. A princípio, como
justa penalidade. Depois, por prazer. Finalmente, e já havia muito
tempo, por hábito. Como a doida respondesse sempre furiosa, criara-se na
mente infantil a idéia de um equilíbrio por compensação, que afogava o remorso.
Em
vão os pais censuravam tal procedimento. Quando meninos, os pais
daqueles três tinham feito o mesmo, com relação à mesma doida, ou a
outras. Pessoas sensíveis lamentavam o fato, sugeriam que se desse um
jeito para internar a doida. Mas como? O hospício era longe, os parentes
não se interessavam. E daí – explicava-se ao forasteiro que porventura estranhasse a situação – toda
cidade tem seus doidos; quase que toda família os tem. Quando se tornam
ferozes, são trancados no sótão; fora disto, circulam pacificamente
pelas ruas, se querem fazê-lo, ou não, se preferem ficar em casa. E doido é quem Deus quis que ficasse doido... Respeitemos
sua vontade. Não há remédio para loucura; nunca nenhum doido se curou,
que a cidade soubesse; e a cidade sabe bastante, ao passo que livros
mentem.
Os
três verificaram que quase não dava mais gosto apedrejar a casa. As
vidraças partidas não se recompunham mais. A pedra batia no caixilho ou
ia aninhar-se lá dentro, para voltar com palavras iradas. Ainda haveria
louça por destruir, espelho, vaso intato? Em todo caso, o mais velho
comandou, e os outros obedeceram na
forma do sagrado costume. Pegaram calhaus lisos, de ferro, tomaram
posição. Cada um jogaria por sua vez, com intervalos para observar o
resultado. O chefe reservou-se um objetivo ambicioso: a chaminé.
O projétil bateu no canudo de folha-de-flandres enegrecido – blem – e veio espatifar uma telha, com estrondo.
Um bem-te-vi assustado fugiu da mangueira próxima. A doida, porém,
parecia não ter percebido a agressão, a casa não reagia. Então o do meio
vibrou um golpe na primeira janela. Bam! Tinha atingido uma lata, e a
onda de som propagou-se lá dentro; o menino sentiu-se recompensado.
Esperaram um pouco, para ouvir os gritos. As paredes descascadas, sob as
trepadeiras e a hera da grade, as janelas abertas e vazias, o jardim de
cravo e mato, era tudo a mesma paz.
Aí
o terceiro do grupo, em seus 11 anos, sentiu-se cheio de coragem e
resolveu invadir o jardim. Não só podia atirar mais de perto na outra
janela, como até, praticar outras e maiores façanhas. Os companheiros,
desapontados com a falta do espetáculo cotidiano, não, queriam segui-lo.
E o chefe, fazendo valer sua autoridade, tinha pressa em chegar ao
campo.
O
garoto empurrou o portão: abriu-se. Então, não vivia trancado? ...E
ninguém ainda fizera a experiência. Era o primeiro a penetrar no jardim,
e pisava firme, posto que cauteloso. Os amigos chamavam-no,
impacientes. Mas entrar em terreno proibido é tão excitante que o apelo
perdia toda a significação. Pisar um chão pela primeira vez; e chão
inimigo. Curioso como o jardim se parecia com qualquer um; apenas era
mais selvagem, e o melão-de-são-caetano se
enredava entre as violetas, as roseiras pediam poda, o canteiro de
cravinas afogava-se em erva. Lá estava, quentando sol, a mesma lagartixa
de todos os jardins, cabecinha móbil e suspicaz.
O menino pensou primeiro em matar a lagartixa e depois em atacar a
janela. Chegou perto do animal, que correu. Na perseguição, foi parar
rente do chalé, junto à cancelinha azul (tinha sido azul) que fechava a
varanda da frente. Era um ponto que não se
via da rua, coberto como estava pela massa de folha gemo A cancela
apodrecera, o soalho da varanda tinha buracos, a parede, outrora pintada
de rosa e azul, abria-se em reboco, e no chão uma farinha de caliça denunciava o estrago das pedras, que a louca desistira de reparar.
A lagartixa salvara-se, metida em recantos só dela sabidos, e o garoto galgou os dois degraus, empurrou cancela, entrou. Tinha a pedra na mão, mas já não era necessária; jogou-a fora. Tudo tão fácil, que até ia perdendo o senso da precaução. Recuou um pouco e olhou para a rua: os companheiros tinham sumido. Ou estavam mesmo com muita pressa, ou queriam ver até aonde iria a coragem dele, sozinho em casa da doida. Tomar café com a doida. Jantar em casa da doida. Mas estaria a doida?
A princípio não distinguiu bem, debruçado à janela, a matéria confusa do interior. Os olhos estavam cheios de claridade, mas afinal se acomodaram, e viu a sala, completamente vazia e esburacada, com um corredorzinho no fundo, e no fundo do corredorzinho uma caçarola no chão, e a pedra que o companheiro jogará.
Passou a outra janela e viu o mesmo abandono, a mesma nudez. Mas aquele quarto dava para outro cômodo, com a porta cerrada. Atrás da porta devia estar a doida, que inexplicavelmente não se mexia, para enfrentar o inimigo. E o menino saltou o peitoril, pisou indagador no soalho gretado, que cedia.
A porta dos fundos cedeu igualmente à pressão leve, entreabrindo-se numa faixa estreita que mal dava passagem a um corpo magro.
No outro cômodo a penumbra era mais espessa parecia muito povoada. Difícil identificar imediatamente as formas que ali se acumulavam. O tato descobriu uma coisa redonda e lisa, a curva de uma cantoneira. O fio de luz coado do jardim acusou a presença de vidros e espelhos. Seguramente cadeiras. Sobre uma mesa grande pairavam um amplo guarda-comida, uma mesinha de toalete mais algumas cadeiras empilhadas, um abajur de renda e várias caixas de papelão. Encostado à mesa, um piano também soterrado sob a pilha de embrulhos
e caixas. Seguia-se um guarda-roupa de proporções majestosas, tendo ao
alto dois quadros virados para a parede, um baú e mais pacotes. Junto à
única janela, olhando para o morro, e tapando pela metade a cortina que a
obscurecia, outro armário. Os móveis enganchavam-se uns nos outros,
subiam ao teto. A casa tinha se espremido ali, fugindo à perseguição de
40 anos.
O menino foi abrindo caminho entre pernas e braços de móveis, contorna aqui, esbarra mais adiante. O quarto era pequeno e cabia tanta coisa.
Atrás da massa do piano, encurralada a um canto, estava a cama. E nela, busto soerguido, a doida esticava o rosto para a frente, na investigação do rumor insólito.
Não adiantava ao menino querer fugir ou esconder-se. E ele estava determinado a conhecer tudo daquela casa. De resto, a doida não deu nenhum sinal de guerra. Apenas levantou as mãos à altura dos olhos, como para protegê-los de uma pedrada.
Ele encarava-a, com interesse. Era simplesmente uma velha, jogada num catre preto de solteiro, atrás de uma barricada de móveis. E que pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma elevação minúscula. Miúda, escura, desse sujo que o tempo deposita na pele, manchando-a. E parecia ter medo.
Mas os dedos desceram um pouco, e os pequenos olhos amarelados encararam por sua vez o intruso com atenção voraz, desceram às suas mãos vazias, tornaram a subir ao rosto infantil.
A criança sorriu, de desaponto, sem saber o que fizesse.
Então a doida ergueu-se um pouco mais, firmando-se nos cotovelos. A boca remexeu, deixou passar um som vago e tímido.
Como a criança não se movesse, o som indistinto se esboçou outra vez.
Ele
teve a impressão de que não era xingamento, parecia antes um chamado.
Sentiu-se atraído para a doida, e todo desejo de maltratá-la se
dissipou. Era um apelo, sim, e os dedos, movendo-se canhestramente, o
confirmavam.
O
menino aproximou-se, e o mesmo jeito da boca insistia em soltar a mesma
palavra curta, que entretanto não tomava forma. Ou seria um bater
automático de queixo, produzindo um som sem qualquer significação?
Talvez pedisse água. A moringa estava no criado - mudo,
entre vidros e papéis. Ele encheu o copo pela metade, estendeu-o. A
doida parecia aprovar com a cabeça, e suas mãos queriam segurar
sozinhas, mas foi preciso que o menino a ajudasse a beber.
Fazia
tudo naturalmente, e nem se lembrava mais por que entrara ali, nem
conservava qualquer espécie de aversão pela doida. A própria idéia de
doida desaparecera. Havia no quarto uma velha com sede, e que talvez
estivesse morrendo.
Nunca vira ninguém morrer, os pais o afastavam se havia em casa um agonizante. Mas deve ser assim que as pessoas morrem.
Um
sentimento de responsabilidade apoderou-se dele. Desajeitadamente,
procurou fazer com que a cabeça repousasse sobre o travesseiro. Os
músculos rígidos da mulher não o ajudavam. Teve que abraçar-lhe os
ombros – com repugnância – e conseguiu, afinal, deitá-la em posição
suave.
Mas
a boca deixava passar ainda o mesmo ruído obscuro, que fazia crescer as
veias do pescoço, inutilmente. Água não podia ser, talvez remédio...
Passou-lhe um a um, diante dos olhos, os frasquinhos do criado-mudo. Sem receber qualquer sinal de aquiescência. Ficou perplexo, irresoluto. Seria caso talvez de chamar alguém, avisar o farmacêutico mais próximo, ou ir à procura do médico, que morava longe. Mas hesitava
em deixar a mulher sozinha na casa aberta e exposta a pedradas. E tinha
medo de que ela morresse em completo abandono, como ninguém no mundo
deve morrer, e isso ele sabia que não apenas porque sua mãe o repetisse
sempre, senão também porque muitas vezes, acordando no escuro, ficara
gelado por não sentir o calor do corpo do irmão e seu bafo protetor.
Foi
tropeçando nos móveis, arrastou com esforço o pesado armário da janela,
desembaraçou a cortina, e a luz invadiu o depósito onde a mulher
morria. Com o ar fino veio uma decisão. Não deixaria a mulher para
chamar ninguém. Sabia que não poderia fazer nada para ajudá-la, a não
ser sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia
acontecer.
1) Como é descrito o local, no início do texto? Por que você acha que é feita essa descrição?
2) Qual era o propósito dos meninos, ao descer a rua, de manhã cedo?
3)
Leia a frase: "Dos doidos devemos ter piedade, porque eles não gozam
dos benefícios com que nós, os sãos, fomos aquinhoados."(2º parágrafo).
Pesquise no dicionário o significado dos termos destacados e assinale as
alternativas corretas.
a) "Gozar", neste contexto, é o mesmo que:
( ) debochar, zombar.
( ) ter, possuir.
b) "os sãos" está se referindo:
( ) às pessoas que são doidas.
( ) aos saudáveis, que usufruem de um bom estado mental.
c) "Aquinhoar" significa ____________________________________________. Nesse contexto, refere-se:
( ) às pessoas que foram beneficiadas com saúde mental.
( ) aos doidos, que não usufruem da saúde mental.
d) A que benefícios referiam-se os adultos, ao dizer às crianças que não deveriam provocar os doidos, e sim ter piedade deles?
4)
Observe a frase:"E isso não comovia ninguém." (2º parágrafo). Por que
você acredita que os meninos não se comoviam com o comentário das mães,
que provocar doidos era um pecado horrendo?
5)
Leia: "E os três sentiam-se inclinados a lapidar a doida, isolada e
agreste no seu jardim." (2º parágrafo). Complete o quadro abaixo, de
acordo com as informações solicitadas.
6) Como é descrita a doida, no 3º parágrafo?
7) Reescreva a frase abaixo, substituindo os termos destacados por sinônimos, sem alterar o contexto.
"Eram
palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns
pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera." (3º parágrafo).
8) Que versões sobre a história da louca eram conhecidas?
9) Que idade ela tinha?
10)
Observe a frase: "[...] mas na própria noite de núpcias, o homem a
repudiara, Deus sabe por que razão." (4º parágrafo). É correto afirmar
que o homem:
( ) a rejeitou. ( ) lhe deu carinho. ( ) a xingou.
11) Leia com atenção a frase abaixo e responda as questões:
"Ir
viver com a doida, pedir bênção à doida, jantar em casa da doida,
passou a ser, na cidade, expressões de castigo e símbolos de irrisão."
(4º parágrafo).
a) Por que os termos destacados tornaram-se sinônimos de castigo, na sua opinião?
b) O narrador disse que as expressões tornaram-se símbolo de irrisão. O que isso quer dizer?
12)
Leia: "E assim, gerações sucessivas de moleques passavam pela porta,
fixavam cuidadosamente a vidraça e lascavam uma pedra." (5º parágrafo).
Quais eram as ações dos meninos?
13) Quais os três motivos elencados pelo narrador que levavam os meninos a quebrar a vidraça da casa da doida?
14) Por que, aos poucos, os meninos perderam o gosto de apedrejar a casa?
15) Onomatopeia é uma figura de linguagem da língua portuguesa, pertencente do grupo das "figuras de palavras" e que indica a reprodução de sons ou ruídos naturais. Há, no texto, algumas onomatopéias. Transcreva-as, respondendo qual o som que elas representam.
16) Observe as frases abaixo e responda às questões:
"Era o primeiro a penetrar no jardim, e pisava firme, posto que cauteloso." (10º parágrafo).
" Lá estava, quentando o sol, a mesma lagartixa de todos os jardins, cabecilha móbil e suspicaz." (10º parágrafo).
O que os termos destacados indicam:
a) Sobre o comportamento do menino, naquele momento?
b) Sobre o comportamento da lagartixa?
17) Como a doida é descrita no 19º parágrafo? É a mesma descrição feita anteriormente?
18) Por que o menino desistiu de maltratar a doida? Ao invés disso, o que ele fez?
19) Por que a atitude do menino, no final do texto, nos surpreende?
A DOIDA - Carlos Drummond de Andrade
A doida
Carlos Drummond de Andrade
A doida habitava um chalé no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o córrego, onde os meninos costumavam banhar-se. Era só aquele chalezinho, à esquerda, entre o barranco e um chão abandonado; à direita, o muro de um grande quintal. E na rua, tornada maior pelo silêncio, o burro pastava. Rua cheia de capim, pedras soltas, num declive áspero. Onde estava o fiscal, que não mandava capiná-la?
Os
três garotos desceram manhã cedo, para o banho e a pega de passarinho.
Só com essa intenção. Mas era bom passar pela casa da doida e provocá-la.
As mães diziam o contrário: que era horroroso, poucos pecados seriam
maiores. Dos doidos devemos ter piedade, porque eles não gozam dos
benefícios com que nós, os sãos, fomos aquinhoados. Não explicavam bem
quais fossem esses benefícios, ou explicavam demais, e restava a
impressão de que eram todos privilégios de gente adulta, como fazer
visitas, receber cartas, entrar para irmandade. E isso não comovia
ninguém. A loucura parecia antes erro do que miséria. E os três sentiam-se inclinados a lapidar a doida, isolada e agreste no seu jardim.
Como era mesmo a cara da doida, poucos poderiam dizê-lo. Não aparecia de frente e de corpo inteiro, como as outras pessoas, conversando na calma. Só o busto, recortado, numa
das janelas da frente, as mãos magras, ameaçando. Os cabelos, brancos e
desgrenhados. E a boca inflamada, soltando xingamentos, pragas, numa voz rouca. Eram palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera.
Sabia-se confusamente que a doida tinha sido moça igual às outras no seu tempo remoto (contava mais de 60 anos, e loucura e idade, juntas, lhe lavravam o corpo). Corria, com variantes, a história de que fora noiva de um fazendeiro, e o casamento, uma festa estrondosa; mas na própria noite de núpcias o homem a repudiara, Deus sabe por que razão. O marido ergueu-se terrível e empurrou-a, no calor do bate-boca; ela rolou escada abaixo, foi quebrando ossos, arrebentando-se. Os dois nunca mais se viram. Já outros contavam que o pai, não o marido, a expulsara, e esclareciam que certa manhã o velho sentira um amargo diferente no café, ele que tinha dinheiro grosso e estava custando a morrer – mas nos racontos antigos abusava-se de veneno. De qualquer modo, as pessoas grandes não contavam a história direito, e os meninos deformavam o conto. Repudiada por todos, ela se fechou naquele chalé do caminho do córrego, e acabou perdendo o juízo. Perdera antes todas as relações. Ninguém tinha ânimo de visitá-la. O padeiro mal jogava o pão na caixa de madeira, à entrada, e eclipsava-se. Diziam que nessa caixa uns primos generosos mandavam pôr, à noite, provisões e roupas, embora oficialmente a ruptura com a família se mantivesse inalterável. Às vezes uma preta velha arriscava-se a entrar, com seu cachimbo e sua paciência educada no cativeiro, e lá ficava dois ou três meses, cozinhando. Por fim a doida enxotava-a. E, afinal, empregada nenhuma queria servi-la. Ir viver com a doida, pedir a bênção à doida, jantar em casa da doida, passou a ser, na cidade, expressões de castigo e símbolos de irrisão.
Vinte anos de tal existência, e a legenda está feita. Quarenta, e não há mudá-la. O sentimento de que a doida carregava uma culpa, que sua própria doidice era
uma falta grave, uma coisa aberrante, instalou-se no espírito das
crianças. E assim, gerações sucessivas de moleques passavam pela porta,
fixavam cuidadosamente a vidraça e lascavam uma pedra. A princípio, como
justa penalidade. Depois, por prazer. Finalmente, e já havia muito
tempo, por hábito. Como a doida respondesse sempre furiosa, criara-se na
mente infantil a idéia de um equilíbrio por compensação, que afogava o remorso.
Em
vão os pais censuravam tal procedimento. Quando meninos, os pais
daqueles três tinham feito o mesmo, com relação à mesma doida, ou a
outras. Pessoas sensíveis lamentavam o fato, sugeriam que se desse um
jeito para internar a doida. Mas como? O hospício era longe, os parentes
não se interessavam. E daí – explicava-se ao forasteiro que porventura estranhasse a situação – toda
cidade tem seus doidos; quase que toda família os tem. Quando se tornam
ferozes, são trancados no sótão; fora disto, circulam pacificamente
pelas ruas, se querem fazê-lo, ou não, se preferem ficar em casa. E doido é quem Deus quis que ficasse doido... Respeitemos
sua vontade. Não há remédio para loucura; nunca nenhum doido se curou,
que a cidade soubesse; e a cidade sabe bastante, ao passo que livros
mentem.
Os
três verificaram que quase não dava mais gosto apedrejar a casa. As
vidraças partidas não se recompunham mais. A pedra batia no caixilho ou
ia aninhar-se lá dentro, para voltar com palavras iradas. Ainda haveria
louça por destruir, espelho, vaso intato? Em todo caso, o mais velho
comandou, e os outros obedeceram na
forma do sagrado costume. Pegaram calhaus lisos, de ferro, tomaram
posição. Cada um jogaria por sua vez, com intervalos para observar o
resultado. O chefe reservou-se um objetivo ambicioso: a chaminé.
O projétil bateu no canudo de folha-de-flandres enegrecido – blem – e veio espatifar uma telha, com estrondo.
Um bem-te-vi assustado fugiu da mangueira próxima. A doida, porém,
parecia não ter percebido a agressão, a casa não reagia. Então o do meio
vibrou um golpe na primeira janela. Bam! Tinha atingido uma lata, e a
onda de som propagou-se lá dentro; o menino sentiu-se recompensado.
Esperaram um pouco, para ouvir os gritos. As paredes descascadas, sob as
trepadeiras e a hera da grade, as janelas abertas e vazias, o jardim de
cravo e mato, era tudo a mesma paz.
Aí
o terceiro do grupo, em seus 11 anos, sentiu-se cheio de coragem e
resolveu invadir o jardim. Não só podia atirar mais de perto na outra
janela, como até, praticar outras e maiores façanhas. Os companheiros,
desapontados com a falta do espetáculo cotidiano, não, queriam segui-lo.
E o chefe, fazendo valer sua autoridade, tinha pressa em chegar ao
campo.
O
garoto empurrou o portão: abriu-se. Então, não vivia trancado? ...E
ninguém ainda fizera a experiência. Era o primeiro a penetrar no jardim,
e pisava firme, posto que cauteloso. Os amigos chamavam-no,
impacientes. Mas entrar em terreno proibido é tão excitante que o apelo
perdia toda a significação. Pisar um chão pela primeira vez; e chão
inimigo. Curioso como o jardim se parecia com qualquer um; apenas era
mais selvagem, e o melão-de-são-caetano se
enredava entre as violetas, as roseiras pediam poda, o canteiro de
cravinas afogava-se em erva. Lá estava, quentando sol, a mesma lagartixa
de todos os jardins, cabecinha móbil e suspicaz.
O menino pensou primeiro em matar a lagartixa e depois em atacar a
janela. Chegou perto do animal, que correu. Na perseguição, foi parar
rente do chalé, junto à cancelinha azul (tinha sido azul) que fechava a
varanda da frente. Era um ponto que não se
via da rua, coberto como estava pela massa de folha gemo A cancela
apodrecera, o soalho da varanda tinha buracos, a parede, outrora pintada
de rosa e azul, abria-se em reboco, e no chão uma farinha de caliça denunciava o estrago das pedras, que a louca desistira de reparar.
A lagartixa salvara-se, metida em recantos só dela sabidos, e o garoto galgou os dois degraus, empurrou cancela, entrou. Tinha a pedra na mão, mas já não era necessária; jogou-a fora. Tudo tão fácil, que até ia perdendo o senso da precaução. Recuou um pouco e olhou para a rua: os companheiros tinham sumido. Ou estavam mesmo com muita pressa, ou queriam ver até aonde iria a coragem dele, sozinho em casa da doida. Tomar café com a doida. Jantar em casa da doida. Mas estaria a doida?
A princípio não distinguiu bem, debruçado à janela, a matéria confusa do interior. Os olhos estavam cheios de claridade, mas afinal se acomodaram, e viu a sala, completamente vazia e esburacada, com um corredorzinho no fundo, e no fundo do corredorzinho uma caçarola no chão, e a pedra que o companheiro jogará.
Passou a outra janela e viu o mesmo abandono, a mesma nudez. Mas aquele quarto dava para outro cômodo, com a porta cerrada. Atrás da porta devia estar a doida, que inexplicavelmente não se mexia, para enfrentar o inimigo. E o menino saltou o peitoril, pisou indagador no soalho gretado, que cedia.
A porta dos fundos cedeu igualmente à pressão leve, entreabrindo-se numa faixa estreita que mal dava passagem a um corpo magro.
No outro cômodo a penumbra era mais espessa parecia muito povoada. Difícil identificar imediatamente as formas que ali se acumulavam. O tato descobriu uma coisa redonda e lisa, a curva de uma cantoneira. O fio de luz coado do jardim acusou a presença de vidros e espelhos. Seguramente cadeiras. Sobre uma mesa grande pairavam um amplo guarda-comida, uma mesinha de toalete mais algumas cadeiras empilhadas, um abajur de renda e várias caixas de papelão. Encostado à mesa, um piano também soterrado sob a pilha de embrulhos
e caixas. Seguia-se um guarda-roupa de proporções majestosas, tendo ao
alto dois quadros virados para a parede, um baú e mais pacotes. Junto à
única janela, olhando para o morro, e tapando pela metade a cortina que a
obscurecia, outro armário. Os móveis enganchavam-se uns nos outros,
subiam ao teto. A casa tinha se espremido ali, fugindo à perseguição de
40 anos.
O menino foi abrindo caminho entre pernas e braços de móveis, contorna aqui, esbarra mais adiante. O quarto era pequeno e cabia tanta coisa.
Atrás da massa do piano, encurralada a um canto, estava a cama. E nela, busto soerguido, a doida esticava o rosto para a frente, na investigação do rumor insólito.
Não adiantava ao menino querer fugir ou esconder-se. E ele estava determinado a conhecer tudo daquela casa. De resto, a doida não deu nenhum sinal de guerra. Apenas levantou as mãos à altura dos olhos, como para protegê-los de uma pedrada.
Ele encarava-a, com interesse. Era simplesmente uma velha, jogada num catre preto de solteiro, atrás de uma barricada de móveis. E que pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma elevação minúscula. Miúda, escura, desse sujo que o tempo deposita na pele, manchando-a. E parecia ter medo.
Mas os dedos desceram um pouco, e os pequenos olhos amarelados encararam por sua vez o intruso com atenção voraz, desceram às suas mãos vazias, tornaram a subir ao rosto infantil.
A criança sorriu, de desaponto, sem saber o que fizesse.
Então a doida ergueu-se um pouco mais, firmando-se nos cotovelos. A boca remexeu, deixou passar um som vago e tímido.
Como a criança não se movesse, o som indistinto se esboçou outra vez.
Ele
teve a impressão de que não era xingamento, parecia antes um chamado.
Sentiu-se atraído para a doida, e todo desejo de maltratá-la se
dissipou. Era um apelo, sim, e os dedos, movendo-se canhestramente, o
confirmavam.
O
menino aproximou-se, e o mesmo jeito da boca insistia em soltar a mesma
palavra curta, que entretanto não tomava forma. Ou seria um bater
automático de queixo, produzindo um som sem qualquer significação?
Talvez pedisse água. A moringa estava no criado - mudo,
entre vidros e papéis. Ele encheu o copo pela metade, estendeu-o. A
doida parecia aprovar com a cabeça, e suas mãos queriam segurar
sozinhas, mas foi preciso que o menino a ajudasse a beber.
Fazia
tudo naturalmente, e nem se lembrava mais por que entrara ali, nem
conservava qualquer espécie de aversão pela doida. A própria idéia de
doida desaparecera. Havia no quarto uma velha com sede, e que talvez
estivesse morrendo.
Nunca vira ninguém morrer, os pais o afastavam se havia em casa um agonizante. Mas deve ser assim que as pessoas morrem.
Um
sentimento de responsabilidade apoderou-se dele. Desajeitadamente,
procurou fazer com que a cabeça repousasse sobre o travesseiro. Os
músculos rígidos da mulher não o ajudavam. Teve que abraçar-lhe os
ombros – com repugnância – e conseguiu, afinal, deitá-la em posição
suave.
Mas
a boca deixava passar ainda o mesmo ruído obscuro, que fazia crescer as
veias do pescoço, inutilmente. Água não podia ser, talvez remédio...
Passou-lhe um a um, diante dos olhos, os frasquinhos do criado-mudo. Sem receber qualquer sinal de aquiescência. Ficou perplexo, irresoluto. Seria caso talvez de chamar alguém, avisar o farmacêutico mais próximo, ou ir à procura do médico, que morava longe. Mas hesitava
em deixar a mulher sozinha na casa aberta e exposta a pedradas. E tinha
medo de que ela morresse em completo abandono, como ninguém no mundo
deve morrer, e isso ele sabia que não apenas porque sua mãe o repetisse
sempre, senão também porque muitas vezes, acordando no escuro, ficara
gelado por não sentir o calor do corpo do irmão e seu bafo protetor.
Foi
tropeçando nos móveis, arrastou com esforço o pesado armário da janela,
desembaraçou a cortina, e a luz invadiu o depósito onde a mulher
morria. Com o ar fino veio uma decisão. Não deixaria a mulher para
chamar ninguém. Sabia que não poderia fazer nada para ajudá-la, a não
ser sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia
acontecer.
1) Como é descrito o local, no início do texto? Por que você acha que é feita essa descrição?
2) Qual era o propósito dos meninos, ao descer a rua, de manhã cedo?
3)
Leia a frase: "Dos doidos devemos ter piedade, porque eles não gozam
dos benefícios com que nós, os sãos, fomos aquinhoados."(2º parágrafo).
Pesquise no dicionário o significado dos termos destacados e assinale as
alternativas corretas.
a) "Gozar", neste contexto, é o mesmo que:
( ) debochar, zombar.
( ) ter, possuir.
b) "os sãos" está se referindo:
( ) às pessoas que são doidas.
( ) aos saudáveis, que usufruem de um bom estado mental.
c) "Aquinhoar" significa ____________________________________________. Nesse contexto, refere-se:
( ) às pessoas que foram beneficiadas com saúde mental.
( ) aos doidos, que não usufruem da saúde mental.
d) A que benefícios referiam-se os adultos, ao dizer às crianças que não deveriam provocar os doidos, e sim ter piedade deles?
4)
Observe a frase:"E isso não comovia ninguém." (2º parágrafo). Por que
você acredita que os meninos não se comoviam com o comentário das mães,
que provocar doidos era um pecado horrendo?
5)
Leia: "E os três sentiam-se inclinados a lapidar a doida, isolada e
agreste no seu jardim." (2º parágrafo). Complete o quadro abaixo, de
acordo com as informações solicitadas.
6) Como é descrita a doida, no 3º parágrafo?
7) Reescreva a frase abaixo, substituindo os termos destacados por sinônimos, sem alterar o contexto.
"Eram
palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns
pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera." (3º parágrafo).
8) Que versões sobre a história da louca eram conhecidas?
9) Que idade ela tinha?
10)
Observe a frase: "[...] mas na própria noite de núpcias, o homem a
repudiara, Deus sabe por que razão." (4º parágrafo). É correto afirmar
que o homem:
( ) a rejeitou. ( ) lhe deu carinho. ( ) a xingou.
11) Leia com atenção a frase abaixo e responda as questões:
"Ir
viver com a doida, pedir bênção à doida, jantar em casa da doida,
passou a ser, na cidade, expressões de castigo e símbolos de irrisão."
(4º parágrafo).
a) Por que os termos destacados tornaram-se sinônimos de castigo, na sua opinião?
b) O narrador disse que as expressões tornaram-se símbolo de irrisão. O que isso quer dizer?
12)
Leia: "E assim, gerações sucessivas de moleques passavam pela porta,
fixavam cuidadosamente a vidraça e lascavam uma pedra." (5º parágrafo).
Quais eram as ações dos meninos?
13) Quais os três motivos elencados pelo narrador que levavam os meninos a quebrar a vidraça da casa da doida?
14) Por que, aos poucos, os meninos perderam o gosto de apedrejar a casa?
15) Onomatopeia é uma figura de linguagem da língua portuguesa, pertencente do grupo das "figuras de palavras" e que indica a reprodução de sons ou ruídos naturais. Há, no texto, algumas onomatopéias. Transcreva-as, respondendo qual o som que elas representam.
16) Observe as frases abaixo e responda às questões:
"Era o primeiro a penetrar no jardim, e pisava firme, posto que cauteloso." (10º parágrafo).
" Lá estava, quentando o sol, a mesma lagartixa de todos os jardins, cabecilha móbil e suspicaz." (10º parágrafo).
O que os termos destacados indicam:
a) Sobre o comportamento do menino, naquele momento?
b) Sobre o comportamento da lagartixa?
17) Como a doida é descrita no 19º parágrafo? É a mesma descrição feita anteriormente?
18) Por que o menino desistiu de maltratar a doida? Ao invés disso, o que ele fez?
19) Por que a atitude do menino, no final do texto, nos surpreende?
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